Cristiane é arquiteta e urbanista com graduação e mestrado pela FAUUSP, sócia do escritório Una MunizViegas, professora e diretora da Escola da Cidade.
Como foi o processo de fundar seu escritório de arquitetura logo depois a graduação?
A graduação é um momento de muitas descobertas, o curso de arquitetura é absolutamente envolvente, no entanto, sou a primeira arquiteta em minha família, não havia essa referência profissional para mim antes da faculdade. Assim, os professores e as professoras que tive foram de absoluta importância em minha formação. Minha turma [ingressamos em 1989] criou a revista Caramelo, e essa experiência foi precursora para o que viria a ser, no futuro, nosso escritório. Aprendemos a trabalhar coletivamente, e seis integrantes desse grupo formaram o Una arquitetos em 1996. Mas imediatamente após formados, todos foram trabalhar em algum escritório importante; trabalhei durante 3 anos com André Vainer e Guilherme Paoliello, uma segunda escola para mim.
Em 1997, muito jovens, ganhamos o concurso para restauro e reforma da agência dos Correios no Anhangabaú, edifício do Ramos de Azevedo, e foi o impulso para formalizar o Una.
O Una passa, agora, por uma reformulação. Num momento de tamanha incerteza, em que ninguém sabe muito bem quais serão as consequências dessa pandemia para a arquitetura no Brasil e no mundo, como vocês pensam em lidar com os próximos desafios levando em consideração essa mudança no escritório?
Essas mudanças vem sendo construídas aos poucos, não são exatamente do período da pandemia; acredito que completamos um ciclo, podemos contar uma bela história com o Una, foram mais de 20 anos, que entretanto, se encerrou e se transformou. Nesse momento, apesar de todas as incertezas e de toda a calamidade que estamos vivendo em termos sanitários, ambientais e políticos, onde é difícil até respirar, esse novos ares nos fazem bem. Temos muitos planos pela frente, eu e Fernando.
Casa Bacopari, Una Arquitetos. Foto por Leonardo Finotti.
Casa Cotia, Una Arquitetos. Foto por Nelson Kon.
Depois de alguns anos, você voltou para a FAU para fazer um mestrado sobre o Metrô paulista e sua relação com o crescimento, muitas vezes desigual, da cidade. O que te atraiu para essa discussão há quinze anos e como você acha que ela evoluiu, ou pelo menos se transformou, desde então?
Essa discussão sempre me atraiu, desfazer os limites entre arquitetura e urbanismo, tecer costuras nas mais diferentes escalas de intervenção, entender que um plano urbano é um instrumento de discussão, antes de ser de execução. Minha primeira experiência por aí foi meu trabalho de graduação na FAUUSP; estudamos coletivamente a inserção da linha de trens Santos-Jundiaí no centro de São Paulo, seu impacto e possibilidades de mudanças. Os bairros do primeiro anel periférico ao centro possuem alto grau de urbanidade e diversos serviços públicos ou privados, e não é aceitável que percam população e que não sejam qualificados para moradia. Estudei a “porta” leste, Rangel Pestana, Celso Garcia e a estação Roosevelt, no Brás, orientada pelo Eduardo de Almeida, e propus uma transposição da ferrovia, remodelação do largo da Concórdia e intervenção na própria estação, com adensamento habitacional e de serviços. Assim, o tema da reorganização urbana a partir da estruturação do transporte público, e que seja uma oportunidade para agregar investimentos [que serão necessários] e potencializar outras esferas de transformação da cidade sempre me instigou. No mestrado, com o mesmo orientador, encontrei uma justificativa para voltar a estudar sistematicamente esse tema, a partir do metrô.
Com os anos, seu papel na Escola vem crescendo cada vez mais, de professora a coordenadora de curso e agora também diretora. Como tem sido essa experiência com o ensino de arquitetura? Você sente que de alguma forma ela complementa seu trabalho como arquiteta no mercado?
Depois de terminar o mestrado, fui convidada a dar aulas na Escola da Cidade, que estava se iniciando. Foi minha primeira experiência como professora. E me apaixonei completamente. Comecei no Estúdio Vertical, depois me tornei professora da sequência de projeto, sou até hoje, em seguida, coordenadora. Junto com a Maira Rios, criamos um curso de pós graduação chamado Arquitetura, Educação e Sociedade, uma espécie de fórum sobre educação em arquitetura, estudar Paulo Freire, Jacques Rancière, refletir sobre como se aprende a ser arquiteto ou arquiteta, e quais as diferenças desta prática nas mais diversas escolas, no Brasil e no resto do mundo. Aos poucos fui assumindo e construindo maiores responsabilidades. A prática cotidiana do escritório pode ter momentos um pouco limitadores. Por outro lado, não me vejo somente na atividade acadêmica. Entendo que uma ação alimenta a outra de forma profícua para a arquitetura. Projeto é uma forma de investigação.
Como a Escola da Cidade se adaptou ao ensino à distância? Você já prevê ou mesmo busca implementar algumas mudanças para o curso daqui para frente? Para, por exemplo, replanejar o programa de viagens a campo, que agrega tanto à formação dos alunos.
Nunca nos pareceu que uma escola de arquitetura poderia ser formada por um currículo cursado à distância. O calor do encontro, as possibilidades imprevisíveis das conversas na aula e fora dela, o exercício atento da escuta e da fala, o espaço de um ateliê para aulas práticas onde se discute tudo ao mesmo tempo, onde se bagunça, suja e depois se limpa, tudo isso não pode ser substituído.
Em março, quando se iniciou o período de isolamento, fazia um mês que havíamos iniciado as aulas, portanto, tivemos que reprogramar o semestre todo, já em andamento. Para esse segundo semestre, as escolas puderam se planejar, sabendo que o período seria provavelmente todo à distância. Assim, no nosso caso, propusemos uma nova dinâmica, baseada nas avaliações do semestre anterior feitas pela comunidade e em práticas pedagógicas mais inovadoras [as vezes essa palavra tem uma conotação ruim, superficial, aqui me refiro à renovação, invenção, atualização]. Estamos trabalhando em um grande workshop, a Escola da Cidade toda, sobre Sao Paulo, chamado Estúdio Transversal, onde os estudantes formaram grupos de 5 pessoas, com mistura de anos, e vem sendo orientados por uma professora ou um professor, parceiros nesse projeto, durante todo o semestre. Reduzimos a carga horária de aulas, deixando espaço para autonomia dos grupos no encaminhamento dos trabalhos, e revisamos todas as disciplinas para se adequar a esse momento. Desapareceram as dezenas de trabalhos a serem entregues, substituídos por um grande projeto, com mais profundidade, a ser avaliado por todas as sequências.
O programa da Escola Itinerante está temporariamente suspenso, estamos em discussão na Escola como poderia ser retomado.
Novas gerações estão acostumadas ao acesso irrestrito à tecnologia, e portanto, a uma biblioteca sem fim de projetos, fotografias, documentários, pinturas, desenhos, filmes. Porém, esta profusão muitas vezes banaliza a própria pesquisa, faltando uma reflexão crítica sobre esse mundo da representação. Entendemos que a experiência de vivenciar um novo lugar, encontros entre distintos costumes, suprasociais, experienciando as obras que estudamos ajuda a construir essa postura crítica.
A FAUUSP Jr. tem como um de seus objetivos ajudar os graduandos a se familiarizarem com o mercado da arquitetura, urbanismo e design, algo que sei que também é um foco principalmente ao final do curso da Escola. Você sentiu falta dessa preparação quando saiu da faculdade?
Uma pergunta difícil, saí da faculdade em um outro século, achavam que na virada do ano 2000 todos os computadores e suas informações iriam se apagar! Mas senti falta, sim, e comecei a trabalhar como arquiteta no dia em que defendi o TGI (era como se chamava o TC). Acredito que a experiência profissional seja complementar à acadêmica, na Escola da Cidade, há vários anos, reformulamos o currículo para incluir no décimo semestre uma experiência de 6 meses sem aulas, somente trabalhando ou estudando em outra instituição, de forma integral. Se chama Vivência Externa e propicia um estágio qualificado, porque orientado pela Instituição, onde quer que seja.
Além disso, temos o Conselho Técnico, formado por professores e estudantes, que desenvolve variados projetos de relevância social. Esta também é uma plataforma oferecida que permite o estágio simultaneamente à faculdade.
Para finalizar, você tem algum conselho para quem está passando pela faculdade ou mesmo entrando no mercado da arquitetura agora?
Temos muita esperança na sua geração, vocês tem consciência de que o consumo exacerbado vem destruindo o planeta. Um momento de profunda crise social e política como esse que vivemos também requer profissionais preparados e abertos ao diálogo. Sejam mediadores, construam pontes entre as pessoas. Temos uma responsabilidade cultural, não desistam, resistam, por mais difícil que seja. Como bem lembrou Milton Hatoum na conversa com Agnaldo Farias, aqui na FAUUSP, citando Guimarães Rosa, “viver é muito perigoso… porque aprender a viver é o viver mesmo”.
Edifício Huma Klabin, Una Arquitetos. Foto por Nelson Kon.
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